O STF pela
primeira vez no Brasil adotou uma Teoria duvidosa a do DOMÍNIO DOS FATOS abandonando a Teoria tradicional em que A DÚVIDA FAVORECE O RÉU. Com
ela (domínio dos fatos), eu passo a trabalhar com indícios e presunções. Eu não busco a verdade
material. Você tem pessoas que trabalham com você. Uma delas comete um crime e
o atribui a você. E você não sabe de nada. Não há nenhuma prova senão o
depoimento dela - e basta um só depoimento. Como você é a chefe dela, pela
teoria do domínio do fato, está condenada, você deveria saber. Todos os
executivos brasileiros correm agora esse risco. É uma insegurança jurídica
monumental. Como um velho advogado, com 56 anos de advocacia, isso me preocupa.
A teoria que sempre prevaleceu no Supremo foi a do "in dubio pro reo"
[a dúvida favorece o réu].
Adriano
Vizoni/Folhapress
O jurista Ives
Gandra Martins durante evento em São Paulo
O ex-ministro José
Dirceu foi condenado sem provas. A teoria do domínio do fato foi adotada de
forma inédita pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para condená-lo.
Sua adoção traz uma
insegurança jurídica "monumental": a partir de agora, mesmo um
inocente pode ser condenado com base apenas em presunções e indícios.
Quem diz isso não é um
petista fiel ao principal réu do mensalão. E sim o jurista Ives Gandra Martins,
78, que se situa no polo oposto do espectro político e divergiu "sempre e
muito" de Dirceu.
Com 56 anos de
advocacia e dezenas de livros publicados, inclusive em parceria com alguns
ministros do STF, Gandra, professor emérito da Universidade Mackenzie, da
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra,
diz que o julgamento do escândalo do mensalão tem dois lados.
Um deles é positivo:
abre a expectativa de "um novo país" em que políticos corruptos
seriam punidos.
O outro é ruim e
perigoso pois a corte teria abandonado o princípio fundamental de que a dúvida
deve sempre favorecer o réu.
Folha
-
O senhor já falou que o julgamento teve um lado bom e um lado ruim. Vamos
começar pelo primeiro.
Ives
Gandra Martins - O povo tem um desconforto
enorme. Acha que todos os políticos são corruptos e que a impunidade reina em
todas as esferas de governo. O mensalão como que abriu uma janela em um
ambiente fechado para entrar o ar novo, em um novo país em que haveria a
punição dos que praticam crimes. Esse é o lado indiscutivelmente positivo. Do
ponto de vista jurídico, eu não aceito a teoria do domínio do fato.
Folha
-
Por quê?
Ives
Gandra Martins - Com ela, eu passo a trabalhar
com indícios e presunções. Eu não busco a verdade material. Você tem pessoas
que trabalham com você. Uma delas comete um crime e o atribui a você. E você não
sabe de nada. Não há nenhuma prova senão o depoimento dela -e basta um só
depoimento. Como você é a chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está
condenada, você deveria saber. Todos os executivos brasileiros correm agora
esse risco. É uma insegurança jurídica monumental. Como um velho advogado, com
56 anos de advocacia, isso me preocupa. A teoria que sempre prevaleceu no
Supremo foi a do "in dubio pro reo" [a dúvida favorece o réu].
Folha
-
Houve uma mudança nesse julgamento?
Ives
Gandra Martins - O domínio do fato é novidade
absoluta no Supremo. Nunca houve essa teoria. Foi inventada, tiraram de um
autor alemão, mas também na Alemanha ela não é aplicada. E foi com base nela
que condenaram José Dirceu como chefe de quadrilha [do mensalão]. Aliás, pela
teoria do domínio do fato, o maior beneficiário era o presidente Lula, o que
vale dizer que se trouxe a teoria pela metade.
Folha
-
O domínio do fato e o "in dubio pro reo" são excludentes?
Ives
Gandra Martins - Não há possibilidade de
convivência. Se eu tiver a prova material do crime, eu não preciso da teoria do
domínio do fato [para condenar].
Folha
-
E no caso do mensalão?
Ives
Gandra Martins - Eu li todo o processo sobre o
José Dirceu, ele me mandou. Nós nos conhecemos desde os tempos em que
debatíamos no programa do Ferreira Netto na TV [na década de 1980]. Eu me dou
bem com o Zé, apesar de termos divergido sempre e muito. Não há provas contra
ele. Nos embargos infringentes, o Dirceu dificilmente vai ser condenado pelo
crime de quadrilha.
Folha
-
O "in dubio pro reo" não serviu historicamente para justificar a
impunidade?
Ives
Gandra Martins - Facilita a impunidade se você
não conseguir provar, indiscutivelmente. O Ministério Público e a polícia têm
que ter solidez na acusação. É mais difícil. Mas eles têm instrumentos para
isso. Agora, num regime democrático, evita muitas injustiças diante do poder. A
Constituição assegura a ampla defesa -ampla é adjetivo de uma densidade
impressionante. Todos pensam que o processo penal é a defesa da sociedade. Não.
Ele objetiva fundamentalmente a defesa do acusado.
Folha
-
E a sociedade?
Ives
Gandra Martins - A sociedade já está se
defendendo tendo todo o seu aparelho para condenar. O que nós temos que ter no
processo democrático é o direito do acusado de se defender. Ou a sociedade
faria justiça pelas próprias mãos.
Folha
-
Discutiu-se muito nos últimos dias sobre o clamor popular e a pressão da mídia
sobre o STF. O que pensa disso?
Ives
Gandra Martins - O ministro Marco Aurélio [Mello]
deu a entender, no voto dele [contra os embargos infringentes], que houve essa
pressão. Mas o próprio Marco Aurélio nunca deu atenção à mídia. O [ministro]
Gilmar Mendes nunca deu atenção à mídia, sempre votou como quis.
Eles estão preocupados,
na verdade, com a reação da sociedade. Nesse caso se discute pela primeira vez
no Brasil, em profundidade, se os políticos desonestos devem ou não ser punidos.
O fato de ter juntado 40 réus e se transformado num caso político tornou o
julgamento paradigmático: vamos ou não entrar em uma nova era? E o Supremo
sentiu o peso da decisão. Tudo isso influenciou para a adoção da teoria do
domínio do fato.
Folha
-
Algum ministro pode ter votado pressionado?
Ives
Gandra Martins - Normalmente, eles não deveriam.
Eu não saberia dizer. Teria que perguntar a cada um. É possível. Eu diria que
indiscutivelmente, graças à televisão, o Supremo foi colocado numa posição de
muitas vezes representar tudo o que a sociedade quer ou o que ela não quer.
Eles estão na verdade é na berlinda. A televisão põe o Supremo na berlinda. Mas
eu creio que cada um deles decidiu de acordo com as suas convicções pessoais,
em que pode ter entrado inclusive convicções também de natureza política.
Folha
-
Foi um julgamento político?
Ives
Gandra Martins - Pode ter alguma conotação
política. Aliás o Marco Aurélio deu bem essa conotação. E o Gilmar também.
Disse que esse é um caso que abala a estrutura da política. Os tribunais do
mundo inteiro são cortes políticas também, no sentido de manter a estabilidade
das instituições. A função da Suprema Corte é menos fazer justiça e mais dar
essa estabilidade. Todos os ministros têm suas posições, políticas inclusive.
Folha
-
Isso conta na hora em que eles vão julgar?
Ives
Gandra Martins - Conta. Como nos EUA conta. Mas,
na prática, os ministros estão sempre acobertados pelo direito. São todos
grandes juristas.
Folha
-
Como o senhor vê a atuação do ministro Ricardo Lewandowski, relator do caso?
Ives Gandra Martins - Ele ficou
exatamente no direito e foi sacrificado por isso na população. Mas foi mantendo
a postura, com tranquilidade e integridade. Na comunidade jurídica, continua
bem visto, como um homem com a coragem de ter enfrentado tudo sozinho.
Folha
-
E Joaquim Barbosa?
Ives
Gandra Martins - É extremamente culto. No
tribunal, é duro e às vezes indelicado com os colegas. Até o governo Lula, os
ministros tinham debates duros, mas extremamente respeitosos. Agora, não. Mudou
um pouco o estilo. Houve uma mudança de perfil.
Folha
-
Em que sentido?
Ives
Gandra Martins - Sempre houve, em outros
governos, um intervalo de três a quatro anos entre a nomeação dos ministros. Os
novos se adaptavam à tradição do Supremo. Na era Lula, nove se aposentaram e
foram substituídos. A mudança foi rápida. O Supremo tinha uma tradição que era
seguida. Agora, são 11 unidades decidindo individualmente.
Folha
-
E que tradição foi quebrada?
Ives
Gandra Martins - A tradição, por exemplo, de
nunca invadir as competências [de outro poder] não existe mais. O STF virou um
legislador ativo. Pelo artigo 49, inciso 11, da Constituição, Congresso pode
anular decisões do Supremo. E, se houver um conflito entre os poderes, o
Congresso pode chamar as Forças Armadas. É um risco que tem que ser evitado.
Pela tradição, num julgamento como o do mensalão, eles julgariam em função do
"in dubio pro reo". Pode ser que reflua e que o Supremo volte a ser
como era antigamente. É possível que, para outros [julgamentos], voltem a
adotar a teoria do "in dubio pro reo".
Folha
-Por
que o senhor acha isso?
Ives
Gandra Martins - Porque a teoria do domínio do
fato traz insegurança para todo mundo.
Da Folha