O STF pela primeira vez no Brasil adotou uma Teoria duvidosa a do DOMÍNIO DOS FATOS abandonando a Teoria tradicional em que A DÚVIDA FAVORECE O RÉU. Com ela (domínio dos fatos), eu passo a trabalhar com indícios e presunções. Eu não busco a verdade material. Você tem pessoas que trabalham com você. Uma delas comete um crime e o atribui a você. E você não sabe de nada. Não há nenhuma prova senão o depoimento dela - e basta um só depoimento. Como você é a chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está condenada, você deveria saber. Todos os executivos brasileiros correm agora esse risco. É uma insegurança jurídica monumental. Como um velho advogado, com 56 anos de advocacia, isso me preocupa. A teoria que sempre prevaleceu no Supremo foi a do "in dubio pro reo" [a dúvida favorece o réu].
Adriano
Vizoni/Folhapress
O jurista Ives
Gandra Martins durante evento em São Paulo
O ex-ministro José
Dirceu foi condenado sem provas. A teoria do domínio do fato foi adotada de
forma inédita pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para condená-lo.
Sua adoção traz uma
insegurança jurídica "monumental": a partir de agora, mesmo um
inocente pode ser condenado com base apenas em presunções e indícios.
Com 56 anos de
advocacia e dezenas de livros publicados, inclusive em parceria com alguns
ministros do STF, Gandra, professor emérito da Universidade Mackenzie, da
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra,
diz que o julgamento do escândalo do mensalão tem dois lados.
Um deles é positivo:
abre a expectativa de "um novo país" em que políticos corruptos
seriam punidos.
O outro é ruim e
perigoso pois a corte teria abandonado o princípio fundamental de que a dúvida
deve sempre favorecer o réu.
Folha
-
O senhor já falou que o julgamento teve um lado bom e um lado ruim. Vamos
começar pelo primeiro.
Ives
Gandra Martins - O povo tem um desconforto
enorme. Acha que todos os políticos são corruptos e que a impunidade reina em
todas as esferas de governo. O mensalão como que abriu uma janela em um
ambiente fechado para entrar o ar novo, em um novo país em que haveria a
punição dos que praticam crimes. Esse é o lado indiscutivelmente positivo. Do
ponto de vista jurídico, eu não aceito a teoria do domínio do fato.
Folha
-
Por quê?
Ives
Gandra Martins - Com ela, eu passo a trabalhar
com indícios e presunções. Eu não busco a verdade material. Você tem pessoas
que trabalham com você. Uma delas comete um crime e o atribui a você. E você não
sabe de nada. Não há nenhuma prova senão o depoimento dela -e basta um só
depoimento. Como você é a chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está
condenada, você deveria saber. Todos os executivos brasileiros correm agora
esse risco. É uma insegurança jurídica monumental. Como um velho advogado, com
56 anos de advocacia, isso me preocupa. A teoria que sempre prevaleceu no
Supremo foi a do "in dubio pro reo" [a dúvida favorece o réu].
Folha
-
Houve uma mudança nesse julgamento?
Ives
Gandra Martins - O domínio do fato é novidade
absoluta no Supremo. Nunca houve essa teoria. Foi inventada, tiraram de um
autor alemão, mas também na Alemanha ela não é aplicada. E foi com base nela
que condenaram José Dirceu como chefe de quadrilha [do mensalão]. Aliás, pela
teoria do domínio do fato, o maior beneficiário era o presidente Lula, o que
vale dizer que se trouxe a teoria pela metade.
Folha
-
O domínio do fato e o "in dubio pro reo" são excludentes?
Ives
Gandra Martins - Não há possibilidade de
convivência. Se eu tiver a prova material do crime, eu não preciso da teoria do
domínio do fato [para condenar].
Ives
Gandra Martins - Eu li todo o processo sobre o
José Dirceu, ele me mandou. Nós nos conhecemos desde os tempos em que
debatíamos no programa do Ferreira Netto na TV [na década de 1980]. Eu me dou
bem com o Zé, apesar de termos divergido sempre e muito. Não há provas contra
ele. Nos embargos infringentes, o Dirceu dificilmente vai ser condenado pelo
crime de quadrilha.
Ives
Gandra Martins - Facilita a impunidade se você
não conseguir provar, indiscutivelmente. O Ministério Público e a polícia têm
que ter solidez na acusação. É mais difícil. Mas eles têm instrumentos para
isso. Agora, num regime democrático, evita muitas injustiças diante do poder. A
Constituição assegura a ampla defesa -ampla é adjetivo de uma densidade
impressionante. Todos pensam que o processo penal é a defesa da sociedade. Não.
Ele objetiva fundamentalmente a defesa do acusado.
Folha
-
E a sociedade?
Ives
Gandra Martins - A sociedade já está se
defendendo tendo todo o seu aparelho para condenar. O que nós temos que ter no
processo democrático é o direito do acusado de se defender. Ou a sociedade
faria justiça pelas próprias mãos.
Folha
-
Discutiu-se muito nos últimos dias sobre o clamor popular e a pressão da mídia
sobre o STF. O que pensa disso?
Ives
Gandra Martins - O ministro Marco Aurélio [Mello]
deu a entender, no voto dele [contra os embargos infringentes], que houve essa
pressão. Mas o próprio Marco Aurélio nunca deu atenção à mídia. O [ministro]
Gilmar Mendes nunca deu atenção à mídia, sempre votou como quis.
Eles estão preocupados,
na verdade, com a reação da sociedade. Nesse caso se discute pela primeira vez
no Brasil, em profundidade, se os políticos desonestos devem ou não ser punidos.
O fato de ter juntado 40 réus e se transformado num caso político tornou o
julgamento paradigmático: vamos ou não entrar em uma nova era? E o Supremo
sentiu o peso da decisão. Tudo isso influenciou para a adoção da teoria do
domínio do fato.
Folha
-
Algum ministro pode ter votado pressionado?
Ives
Gandra Martins - Normalmente, eles não deveriam.
Eu não saberia dizer. Teria que perguntar a cada um. É possível. Eu diria que
indiscutivelmente, graças à televisão, o Supremo foi colocado numa posição de
muitas vezes representar tudo o que a sociedade quer ou o que ela não quer.
Eles estão na verdade é na berlinda. A televisão põe o Supremo na berlinda. Mas
eu creio que cada um deles decidiu de acordo com as suas convicções pessoais,
em que pode ter entrado inclusive convicções também de natureza política.
Ives
Gandra Martins - Pode ter alguma conotação
política. Aliás o Marco Aurélio deu bem essa conotação. E o Gilmar também.
Disse que esse é um caso que abala a estrutura da política. Os tribunais do
mundo inteiro são cortes políticas também, no sentido de manter a estabilidade
das instituições. A função da Suprema Corte é menos fazer justiça e mais dar
essa estabilidade. Todos os ministros têm suas posições, políticas inclusive.
Folha
-
Isso conta na hora em que eles vão julgar?
Ives
Gandra Martins - Conta. Como nos EUA conta. Mas,
na prática, os ministros estão sempre acobertados pelo direito. São todos
grandes juristas.
Folha
-
Como o senhor vê a atuação do ministro Ricardo Lewandowski, relator do caso?
Ives Gandra Martins - Ele ficou exatamente no direito e foi sacrificado por isso na população. Mas foi mantendo a postura, com tranquilidade e integridade. Na comunidade jurídica, continua bem visto, como um homem com a coragem de ter enfrentado tudo sozinho.
Ives Gandra Martins - Ele ficou exatamente no direito e foi sacrificado por isso na população. Mas foi mantendo a postura, com tranquilidade e integridade. Na comunidade jurídica, continua bem visto, como um homem com a coragem de ter enfrentado tudo sozinho.
Folha
-
E Joaquim Barbosa?
Ives
Gandra Martins - É extremamente culto. No
tribunal, é duro e às vezes indelicado com os colegas. Até o governo Lula, os
ministros tinham debates duros, mas extremamente respeitosos. Agora, não. Mudou
um pouco o estilo. Houve uma mudança de perfil.
Folha
-
Em que sentido?
Ives
Gandra Martins - Sempre houve, em outros
governos, um intervalo de três a quatro anos entre a nomeação dos ministros. Os
novos se adaptavam à tradição do Supremo. Na era Lula, nove se aposentaram e
foram substituídos. A mudança foi rápida. O Supremo tinha uma tradição que era
seguida. Agora, são 11 unidades decidindo individualmente.
Folha
-
E que tradição foi quebrada?
Ives
Gandra Martins - A tradição, por exemplo, de
nunca invadir as competências [de outro poder] não existe mais. O STF virou um
legislador ativo. Pelo artigo 49, inciso 11, da Constituição, Congresso pode
anular decisões do Supremo. E, se houver um conflito entre os poderes, o
Congresso pode chamar as Forças Armadas. É um risco que tem que ser evitado.
Pela tradição, num julgamento como o do mensalão, eles julgariam em função do
"in dubio pro reo". Pode ser que reflua e que o Supremo volte a ser
como era antigamente. É possível que, para outros [julgamentos], voltem a
adotar a teoria do "in dubio pro reo".
Folha
-Por
que o senhor acha isso?
Ives
Gandra Martins - Porque a teoria do domínio do
fato traz insegurança para todo mundo.
Da Folha
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